A circunstância de o Tribunal Constitucional, quando confrontado nos últimos anos – desde 2008 em particular – com pedidos de fiscalização abstracta da constitucionalidade de diplomas que põem em causa direitos sociais, ter nessa fiscalização relativizado a protecção da confiança, degradando-a ao preenchimento de mínimos, e de apenas se manifestar disponível para a exercer de acordo com critérios de igualdade e de proporcionalidade, mais subjectivos, desagrada a gregos e a troianos e favorece a qualificação das suas decisões como “políticas”.
Tudo se passa como se o Tribunal, cuja composição é aliás definida no essencial na Assembleia da República (infelicíssima fórmula de Almeida Santos) funcionasse como segunda câmara do Parlamento, com o poder de vetar decisões da primeira câmara – a Assembleia – mas sem poder propôr ele próprio legislação.
Para mais, ainda que vertidas em acordãos de duzentas páginas, as suas posições acabam por ser para os actores políticos e para a população em geral tão ininteligíveis como os dizeres da Sibila, pelo menos na medida em que cada um tira para o futuro conclusões que poderão vir a ser infirmadas na fiscalização seguinte. Isto não é só por o Tribunal poder declarar a inconstitucionalidade de normas mas não a sua constitucionalidade. É também uma consequência do relativismo que adoptou em relação aos direitos sociais.
Dois exemplos:
Li com alguma atenção o Acórdão que há anos não se pronunciou pela inconstitucionalidade da Lei de 2005 que reformulou a fórmula de cálculo das pensões dos funcionários públicos admitidos antes de Setembro de 1993, substituindo-a por uma média dos resultados de duas fórmulas de cálculo, reflectindo respectivamente o anterior regime e o novo.
Considerou o Tribunal, agarrando-se a uma disposição do Estatuto da Aposentação, aliás de formulação relativamente recente, que só existiam “direitos adquiridos” depois do despacho de concessão da aposentação, não cuidando dos “direitos em formação” que a própria legislação geral da Segurança Social reconhecia, e que obrigariam, na minha opinião, a ponderar os resultados de ambas as parcelas da fórmula tendo em conta a extensão das carreiras contributivas de cada um dos beneficiários sob a legislação de 1979, aprovada aliás pelo Governo Mota Pinto, muito longe de qualquer processo revolucionário.
Só que estes direitos adquiridos deixaram aparentemente de o ser para o Tribunal Constitucional quando surgiu a contribuição extraordinária de solidariedade. É certo que os cortes resultantes da dita “contribuição” têm um paralelismo com os cortes dos vencimentos da função pública que o Tribunal deixou passar no OE para 2011. Mas há aqui uma falsa igualdade: enquanto que os vencimentos cortados se inseriam numa estrutura de remunerações mais ou menos coerente, reflectindo as categorias detidas e as antiguidades atingidas, as pensões agora cortadas reflectem a aplicação de legislação que foi variando ao longo do tempo e carreiras contributivas muito diferenciadas, que no sector privado eram facilmente manipuláveis. Uma pensão não pode ser considerada elevada pelo seu valor, é-o ou não em relação à carreira contributiva subjacente, para a qual na função pública conta todo o tempo de serviço.
A única comparação possível em termos de igualdade deveria basear-se na actual lei da segurança social que considera toda a carreira contributiva para efeitos de cálculo de determinação de pensões. Como já escrevi, e incorporando aqui uma vertente de protecção de confiança e os comandos da Constituição Fiscal – que prevê um imposto único sobre o rendimento pessoal de carácter progressivo tendo em conta as circunstâncias familiares – parecer-me-ia admissível uma tributação agravada em sede de IRS da parte do rendimento da pensão que excedesse a que poderia ser atribuída com aplicação da nova Lei, e sendo a taxa de agravamento dependente do escalão do conjunto do rendimento.
https://ivogoncalves.wordpress.com/2013/01/13/recalcular-todas-as-pensoes-segundo-a-nova-formula/
Mas não é isso que está a ser falado e restará ver, nas previsíveis cenas dos próximos capítulos, se o Tribunal Constitucional autorizará cortes de rendimentos e pensões que não tenham carácter temporário.
Li igualmente com atenção o Acórdão do Tribunal Constitucional que se não pronunciou pela inconstitucionalidade da Lei de 2008 sobre vínculos, carreiras e remunerações da função pública na parte em que fazia transitar a maioria dos trabalhadores providos por nomeação para o regime de contrato de trabalho em funções públicas.
O Tribunal não suportou a tese de que o direito constitucional à estabilidade de emprego conjugada com a necessidade de se dispôr de uma Administração Pública imparcial exigiria que os funcionários (aliás convertidos em “trabalhadores em funções públicas”) não pudessem ser despedidos, mas também considerou que não estariam em causa os direitos adquiridos dos trabalhadores que à data detinham o vínculo de nomeação, uma vez que estes. segundo o nº 4 do Artigo 88º da Lei em causa, mantêm em matéria de segurança de emprego o regime anterior, mesmo transitando para contrato de trabalho em funções públicas.
É claro que o Tribunal não afirmou que esta previsão era exigida pela Constituição nem que uma futura Lei não a poderia revogar.
Em finais de 2006 a Comissão designada pelo Governo de José Sócrates para estudar estas questões desapareceu do mapa, em grande parte porque o seu presidente Luís Fábrica insistia em afirmar publicamente que nada impedia que fosse aprovada uma lei autorizando o despedimento de funcionários públicos.
Teria razão ? Possivelmente iremos sabê-lo daqui por uns tempos.
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