As empresas públicas no Estado Novo

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O período entre a “Revolução Nacional” de 28 de Maio de 1926 e o 25 de Abril de 1974, que, por facilidade de denominação, aqui englobaremos sob a designação genérica de Estado Novo, sem subperiodizações, é geralmente visto como um período em que Portugal não teria empresas públicas, que apenas teriam surgido com as nacionalizações de 1974 a 1976. Não é exactamente assim.

O início do período caracteriza-se é certo, no que diz respeito ao sector público empresarial, por uma combinação de várias formas de privatização em sentido amplo: redução da escala de actividade da Imprensa Nacional à qual são reservados os trabalhos do Estado “a que não pode faltar certo cunho de autenticidade que os acredite ou imponha” e que “em regra não trabalhará para os particulares” e extinção da Imprensa da Universidade de Coimbra “para que o Estado não seja desnecessário e inconveniente concorrente à indústria privada” [i], o arrendamento (posteriormente transformado em concessão) em 1927 dos caminhos de ferro do Estado à CP, a regulamentação severa dos serviços municipalizados pelas versões de 1936 e de 1940 do Código Administrativo.

Nuno Valério [ii] vê aqui apenas um abandono de intervenções económicas específicas, mas deve notar-se que mesmo antes do 28 de Maio um trabalho de 1923 de Ezequiel de Campos e Quirino da Fonseca apontava nesse sentido [iii], aliás em 1922 o Congresso da República havia votado o desmantelamento dos Transportes Marítimos do Estado [iv], com venda às companhias de navegação portuguesas existentes do que havia sobrevivido das embarcações alemães apresadas nos nossos portos em 1916, desmantelamento esse que seria acelerado por novo acto legislativo em 1924 [v] e consumado em 1925.

Em 1928 a Reforma Orçamental de Salazar [vi] mandava incluir nos Mapas do Preâmbulo do Orçamento Geral do Estado um Mapa nº 2 que “fará o enunciado geral das empresas do Estado e compreenderá duas Divisões, com as suas verbas globais, a saber: Divisão A – Conta de exploração: despesas, receitas, superavit, deficit ; Divisão B – Conta de estabelecimento, despesas, receitas provenientes da conta de exploração, subvenção do Tesouro”, que se manteria com algumas alterações nos diplomas de 1949 [vii] e de 1960 [viii] que futuramente reformulariam a estrutura destes mapas, no entanto alcançado o objectivo de proporcionar informação, Salazar, como em relação a outras partes da sua “obra financeira”, desinteressar-se-ia desta área, sendo de notar que estas “empresas do Estado” não estavam sujeitas a um regime geral de empresas públicas na altura inexistente.

É certo que durante um período de reconstituição financeira e económica vigente por três anos a começar em 1928/29 a Reforma Orçamental estipulava que “serão passados para administração ou exploração de empresas particulares os serviços do Estado de carácter exclusivamente industrial e comercial e bem assim aqueles que pela sua natureza possam ser confiados à indústria privada com vantagem financeira ou económica formulando-se bases especiais para cada caso com o possível aproveitamento do pessoal respectivo”, sendo a adjudicação feita por concurso público mas sem que se previsse a alienação, e que veio a ser inserido no Estatuto do Trabalho Nacional que ““o Estado deve renunciar a explorações de carácter comercial ou industrial mesmo quando se destinem a ser utilizadas no todo ou em parte pelos serviços públicos, e quer concorram no campo económico com as actividades particulares, quer constituam exclusivo”, mas esta previsão veio a revelar-se essencialmente programática.

Em 1947 o legislador da reorganização dos estabelecimentos fabris militares preocupa-se, depois do estado de alerta durante a II Guerra Mundial, em restituir espaço às empresas privadas e conseguir uma maior eficiência mas não em privatizar:

O Ministério da Guerra só terá na sua dependência os estabelecimentos ou organizações industriais e comerciais indispensáveis ao provimento das necessidades de defesa nacional que não possam ser satisfeitas por intermédio de empresas privadas ou os que convenha reservar, total e parcialmente, para mais perfeita eficiência da força armada, no que diz respeito a rapidez de acção e segurança ou manutenção de segredo em assuntos relativos à mesma defesa… Os estabelecimentos industriais e comerciais na dependência do Ministério da Guerra não podem, em geral, concorrer no campo económico com as empresas ou actividades particulares, nem podem dedicar-se a fabricos ou trabalhos que não se contenham dentro dos objectivos estritamente prescritos na sua organização, salvo em caso de guerra ou de perigo iminente dela…O Ministério da Guerra, em relação às encomendas ou fabricos que seja possível obter simultaneamente nos estabelecimentos fabris do Estado ou nas empresas particulares, só preferirá os produtos dos estabelecimentos na sua dependência quando, respeitadas as características da qualidade e as conveniências quanto a prazos de entrega, lhe for possível obtê-los ali por menor preço” [ix]

Nestas condições cabe-nos chamar a atenção para uma interessante publicação da Direcção-Geral da Contabilidade Pública a que já nos referimos em artigo anterior, que documenta a reflexão interna do organismo realizada entre 1954 e 1956 sobre o mapa nº 2 do Preâmbulo do Orçamento Geral do Estado (OGE) relativos às “Contas de Exploração e de Estabelecimento das Empresas do Estado” encontrou flutuações nos critérios de inclusão desde 1928/29 (alguns serviços “foram incluídos durante certo número de anos, para dele não constarem alguns anos e reaparecerem depois”), e levou a que se estabelecesse acesa controvérsia sobre se a obtenção de lucros era ou não essencial para se considerar um determinado serviço como empresa do Estado (estava em causa apenas a inclusão em mapa do preâmbulo do OGE e não qualquer recomendação quanto à modificação do regime de gestão), havendo quem considerasse essencial o carácter lucrativo ou, pelo menos, quem sustentasse que a aceitação de um desequilíbrio sistemático entre receitas e despesas excluía a classificação como empresa.

Também houve, no mesmo debate interno, quem defendesse que a inclusão deveria apenas ter lugar em relação a serviços de carácter agrícola, industrial ou comercial, excluindo os serviços de carácter cultural, como a Emissora Nacional de Radiodifusão e o Teatro Nacional de S. Carlos (apesar de na altura o Teatro Nacional D. Maria II estar concessionado a uma empresa). O Director-Geral pronunciou-se no seguinte sentido: “É sabido que, em harmonia com a nossa estrutura político-administrativa, o Estado, em regra, não mantém explorações. Mas por vezes, e em presença de determinadas razões (políticas, sociais ou outras), o Estado abre excepções àquela regra, exercendo directamente uma actividade explorativa, nuns casos com carácter de continuidade, noutras por períodos limitados e até despertar o interesse dos capitais particulares. Os Serviços do Estado desta natureza, até por necessidades impostas pela actividade que desenvolvem, vão enriquecendo o património que lhes está afecto. Estes Serviços devem constar do mapa nº 2.”. No mesmo ensejo, o dirigente sustentou a natureza empresarial dos serviços com funções educativas e culturais.

Dos 20 casos incluídos no Mapa em 1954 – Emissora Nacional de Radiodifusão, Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, Casa da Moeda, Imprensa Nacional de Lisboa, Fábrica Militar de Braço de Prata, Fábrica Nacional de Munições de Armas Ligeiras, Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, Manutenção Militar, Oficinas Gerais de Equipamento e Arreios, Oficinas Gerais de Fardamento, Oficinas Gerais de Material de Engenharia, Arsenal do Alfeite, Estação Zootécnica Nacional, Laboratório Central de Patologia Veterinária, Serviços Florestais e Aquícolas, Correios Telégrafos e Telefones, Fundo Especial de Transportes Terrestres, Juntas Autónomas de Portos, Porto de Lisboa, Portos do Douro e Leixões – foram excluídos três, um por não ter qualquer actividade de exploração de estabelecimentos (Fundo Especial de Transportes Terrestres), os outros dois por ser residual a venda de serviço a particulares (Estação Zootécnica Nacional, Laboratório Central de Patologia Veterinária).

Foram incluídos 5 novos casos, a saber, Fábrica Nacional de Cordoaria, objecto de alguma discussão por, apesar de dispor de “contabilidade industrial” como os restantes estabelecimentos fabris militares, não facturar, como eles, as suas vendas para os restantes departamentos da Administração Pública, o Teatro Nacional de S. Carlos, o Estabelecimento Termal das Caldas de Monchique e a Caixa Geral de Depósitos, apesar de não sujeita esta ao regime da contabilidade pública. A integração dos hospitais chegou a ser equacionada mas não foi proposta.

Aureliano Felismino, contra as conclusões formuladas no processo de discussão, mandou incluir também nas empresas do Estado a Fábrica-Escola Irmãos Stephens, na Marinha Grande, uma vez que, fundamentou, se tratava de estabelecimento fabril, o pessoal estava sujeito ao regime de previdência das empresas particulares, concorria com a indústria particular, integrava um estabelecimento de vendas, fazia propaganda comercial e se previa a valorização do património, a constituição de fundos de reserva e a dispensa de subsídio orçamental que apenas constituía o fundo de maneio e desapareceria logo que os lucros obtidos o permitissem.

É de constatar que o Director-Geral mandou organizar esta espécie de “Seminário Interno” depois de ter apresentado uma comunicação sobre “l´administration des entreprises publiques à caractere économique au Portugal” na Mesa Redonda do Instituto Internacional de Ciências Administrativas realizada na Haia em 1954, e fez publicar com a chancela do Gabinete de Estudos António José Malheiro o relato da discussão interna mesmo dele constando pontos de vista com que não concorda [x].

Constatamos não estarem abrangidos por esta enumeração das empresas do Estado os organismos de coordenação económica que para além de actuarem em termos regulamentares protagonizavam por vezes operações económicas actuando como verdadeiras empresas públicas de comércio interno ou até de comércio externo. Assinalou Vital Moreira: “Curiosamente não se conhece nenhum caso de substituição de um organismo de coordenação económica por um organismo corporativo…O que ocorreu foi a absorção de organismos corporativos por organismos de coordenação económica, ou pelo menos a absorção das suas funções de ‘coordenação económica’”[xi]. A partir de 1949 um dos mapas do preâmbulo do OGE, a recomendação da Câmara Corporativa, passou a incluir as receitas e despesas dos organismos de coordenação económica – Comissões Reguladoras, Juntas Nacionais e Institutos.

A partir da II Guerra Mundial a opção desenvolvimentista traduzida, entre outras iniciativas, na aprovação da Lei de Electrificação Nacional e da Lei de Fomento e Reorganização Industrial [xii], levou o Estado, com recurso ao Fundo de Fomento Nacional, a participar no capital de numerosas sociedades sob a figura doutrinária de empresa de economia mista, e/ou a conceder empréstimos e garantias, designando administradores por parte do Estado e delegados do Governo (mais tarde a Previdência participaria também). Nalgumas dessas empresas como a TAP, o Metropolitano de Lisboa, a RTP e as empresas do sector eléctrico, a influência pública era dominante.

Entretanto o Estado Novo sempre seguiu a orientação de criar entidades públicas para operar os estabelecimentos de concessionárias, designadamente estrangeiras, cuja concessão devesse chegar ao termo, o que sucedeu com os STCP (concessão terminada em 1942, os TLP a primeira entidade criada como empresa pública em 1967, e estava previsto desde 1973 que viesse a suceder em Outubro do ano seguinte com as águas de Lisboa.

O pós 25 de Abril conheceu desenvolvimentos que se podem qualificar de sinuosos: se entre 1974 e 1976 foram nacionalizadas numerosas empresas incluindo aquelas em que o capital público era dominante, seguiu-se em primeiro lugar o desmantelamento dos organismos de coordenação económica, a bem da liberalização dos mercados, depois a fúria reprivatizadora, que atingiu também sectores que no Estado Novo eram consensualmente controlados pelo Estado e que nos Governos de Passos Coelho, incluindo o derrubado pela rejeição do Programa, foram quase levando o que restava das antigas “empresas do Estado” de Salazar, incluindo os CTT. Por pouco, como explicava recentemente o Major General Carlos Branco [xiii], não extinguiram também o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos que manteve até 2019 o estatuto de estabelecimento fabril militar de 1947 cuja Lei só então foi possível revogar, mas a quem não foi consentida sequer a constituição da Reserva Estratégica de Medicamentos prevista no seu actual diploma orgânico. Estamos todos neste momento a pagar por isso.

 

NOTAS

 

[i] Note-se no entanto que, no que se refere à imprensa do Estado, este tipo de medidas havia sido reivindicado recorrentemente em outras épocas históricas e em momentos de crise das tipografias privadas, como se dá conta em Indústria, Artes e Letras, 250 anos da Imprensa Nacional, trabalho de investigação coordenado por Inês Queirós e publicado recentemente pela INCM.

[ii] As Finanças Públicas Portuguesas entre as Duas Guerras Mundiais, publicado em 1994.

[iii] Ver “A Crise Portuguesa. Subsídios para a Reorganização Nacional”, 1923,de Ezequiel de Campos em colaboração com Quirino de Jesus, autor dos capítulos I e II que justamente focam este aspecto, em Ezequiel de Campos, Textos de Economia e Política Agrária e Industrial (1918-1944), Introdução e Direcção de Edição de Fernando Rosas, publicado pelo Banco de Portugal em 1988.

[iv] Lei nº 1 346, de 9 de Setembro de 1922.

[v] Lei 1 577, de 10 de Abril de 1924.

[vi] Decreto nº 15 465, de 12 de Maio de 1928.

[vii] Decreto-Lei nº 37 429, de 28 de Maio de 1949, que adicionou na Conta de Estabelecimento “empréstimos, saldos e fundos diversos, etc.”

[viii] Decreto – Lei nº 42 949 de 27 de Abril de 1960, que passou a nº 3 o Mapa relativo as empresas do Estado.

[ix] Lei nº 2 020, de 19 de Março de 1947.

[x] Redigido, como relator, pelo Chefe de Secção Joaquim das Neves dos Santos, a quem a publicação dá os devidos créditos.

[xi] No seu livro Auto-Regulação Profissional e Administração Pública, publicado em 1997.

[xii] Lei nº 2 002 de 26 de Dezembro de 1944 e Lei nº 2 005, de 14 de Março de 1945.

[xiii] “A Saúde Militar é um activo do Estado”, Jornal Económico de 30 de Março de 2020.

 

 

 

Publicado no Jornal Tornado em 8 de Abril de 2020

 

As empresas públicas no Estado Novo

Sobre ivogoncalves

71 anos Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia, Mestre em Administração e Políticas Públicas pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Doutor em Sociologia, especialidade de Sociologia Política, pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Detém Diploma de Estudos Avançados (3º Ciclo) em História Moderna e Contemporânea da mesma instituição. Domínios de actividade profissional: Gestão Orçamental Pública, Auditoria e Fiscalização, Recuperação de Empresas como dirigente, técnico ou consultor e formador. Outros domínios de interesse: Sistemas de Informação. Docente do ensino superior de Setembro de 1976 a Maio de 1985 no Instituto Superior de Economia, e de Outubro de 1985 a Julho de 2010 no Instituto Superior de Gestão (integrado actualmente no Grupo Lusófona). Membro nº 15 da Ordem dos Economistas. Pertence ao Colégio de Economia Política e ao Colégio de Auditoria. Membro nº 1385 do Instituto Português de Auditoria Interna. Sócio nº 20831 da Sociedade de Geografia de Lisboa. Sócio nº 10 da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação. Sócio nº 84 do Institute of Public Policy.
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