“Filhos da Terra” de António Manuel Hespanha

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Filhos da Terra – Identidades mestiças nos confins da expansão portuguesa, de António Manuel Hespanha, Lisboa: Tinta-da-China, 2019, abre novas perspectivas para considerar o impacto da expansão portuguesa ao tratar a formação e sobrevivência de comunidades mestiças (ainda que só remotamente identificáveis como portuguesas fora dos limites do “império formal” ), definidas não só em termos de identificação de um ascendente português, mas também, como  refere o autor, em termos religiosos, étnicos e culturais. Estes “portugueses”, e António Hespanha cuida de utilizar sempre as aspas, evitando-nos a ilusão de os vermos como habitantes típicos  do Portugal actual, terão um ou outro traço identificador  que difere conforme as situações: pode ser um chapéu na cabeça, com o qual são representados, pode ser uma especial habilidade em tarefas militares, pode ser  a assunção de uma postura de mando ou de intermediação, conforme a origem da  comunidade. Claro que poderão ter também traços que os ligam a outras comunidades e dispor apenas  de uma ideia muito difusa sobre a sua origem..

Ao ler este trabalho de António Hespanha tentei convocar as noções que me foram incutidas pelo ensino do Estado Novo sobre os tempos da expansão portuguesa e sobre os episódios que conduziram à sua retração.

Se bem me lembro, tudo tinha começado a correr mal no período filipino: o Brasil e Angola tinham sido recuperados, Ceuta, Ormuz, Malaca e Ceilão tinham-se perdido para sempre, mas da informação veiculada não  resultava evidente o que se passara, em particular que alguns insucessos tinham ocorrido já depois da Restauração  (em Ceuta, segundo creio, o governador optou por Espanha, Ormuz foi tomada pelos nossos aliados ingleses,  Malaca e Ceilão arrebatadas  pelos Holandeses), nem que a população portuguesa de Ormuz se tinha transferido para Mascate (Omã) e a de Malaca para Macassar (Celebes) soluções que não duraram. A propósito da subsistência de um crioulo português em Malaca, Hespanha critica a iniciativa infeliz verificada já no Século XX de aí tentar ensinar o português padrão. Os livros de História registam a entrega de Tanger e Bombaim à Inglaterra, a título de dote de D. Catarina de Bragança, mas não falam das Terras do Norte, de Chaul e Baçaim.

Mas para além do que integrou o império formal e se perdeu, quantas comunidades nas áreas de que já não nos recordamos, na Pérsia, na Índia – Indico ocidental e Índico oriental (só há pouco ouvi falar de S. Tomé de Meliapor), nas costas do golfo de Bengala, na actual Birmânia, no Sião, no Cambodja, no Vietname (sobretudo na Cochim – China, o nome será nosso e visa distinguir a região da de Cochim –  Índia,  e no Anam, tendo-nos sido o Tonquim  mais hostil), em Java, nas Molucas e mais adiante no Mar de Timor. Hoje em dia esqueceu-se que cedemos / vendemos Solor, mas António Hespanha não deixa de se referir aos “portugueses” que por lá se manifestavam.

Mais acima as comunidades cristãs secretas no Japão, e as nossas interfaces na China, tais como Liampó (de que fala a Peregrinação) e Macau (que Hespanha explica não considerar incluída no império formal).

Em África já tinha ouvido falar dos “grumetes” da Guiné, nas descrições de René Pelissier,  e dos laços com as populações do Casamansa, bem como dos “ambaquistas” de Angola, mas não tinha ideia de que uma parte das populações que resistiram à ocupação efectiva de Moçambique também já tinha sofrido a influência portuguesa.

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Na América Latina, para além do Brasil, de onde Hespanha exclui os indios das missões, organizados contra os portugueses e contra os bandeirantes, terão existido outras  comunidades na América Espanhola, falando-se um  “papiamento” em Curaçau, Bonaire e Aruba.

Chamou-me a atenção  que a existência destes alguns destes pequenos núcleos deixa de poder ser seguida a partir da segunda metade, ou pelo menos do fim, do século XIX, talvez por força do reforço do colonialismo europeu.

Possivelmente só um historiador das instituições como António Hespanha poderia abalançar-se a avaliar estes vestígios de História que decorreu à margem das instituições políticas portuguesas, com a imprescindível discussão de diversas  questões teóricas  e metodológicas.

E o facto é que o livro, com 36 páginas de “Notas” e 30 de “Bibliografia citada” se lê com muita facilidade e agrado.

Deixo algumas reflexões que, esclareço, não me foram directamente sugeridas pelo livro

– a questão da nacionalidade dos nascidos em Portugal e dos que aqui se radiquem lá vai sendo regulada;

– importa não perder o contacto com as comunidades de emigrantes, históricos ou recentes, espalhados um pouco por todo o Mundo;

– a dupla nacionalidade em igualdade de direitos, que já existe com o Brasil e que Mário Soares em tempos propôs sem sucesso instituir em relação a Cabo Verde,  talvez pudesse vir a ser alargada a outros países da CPLP;

– foi adoptada uma política legislativa que visa recuperar o contacto com as comunidades integradas por judeus expulsos na nossa era de maior expansão;

– por que não facilitar a atribuição de nacionalidade portuguesa também nestes casos que estiveram nos confins do Império sem nunca dele terem chegado a fazer parte ?

 

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Sobre ivogoncalves

71 anos Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia, Mestre em Administração e Políticas Públicas pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Doutor em Sociologia, especialidade de Sociologia Política, pelo ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Detém Diploma de Estudos Avançados (3º Ciclo) em História Moderna e Contemporânea da mesma instituição. Domínios de actividade profissional: Gestão Orçamental Pública, Auditoria e Fiscalização, Recuperação de Empresas como dirigente, técnico ou consultor e formador. Outros domínios de interesse: Sistemas de Informação. Docente do ensino superior de Setembro de 1976 a Maio de 1985 no Instituto Superior de Economia, e de Outubro de 1985 a Julho de 2010 no Instituto Superior de Gestão (integrado actualmente no Grupo Lusófona). Membro nº 15 da Ordem dos Economistas. Pertence ao Colégio de Economia Política e ao Colégio de Auditoria. Membro nº 1385 do Instituto Português de Auditoria Interna. Sócio nº 20831 da Sociedade de Geografia de Lisboa. Sócio nº 10 da Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação. Sócio nº 84 do Institute of Public Policy.
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